Spin-off de Star Wars comprova resiliência da mitologia de George Lucas através de gerações, apostando na nostalgia, no empoderamento feminino e no politicamente correto
Trinta e nove anos separam Rogue One (2016) do lançamento de A New Hope (1977), primeiro filme da saga Star Wars. De lá para cá muita coisa mudou, a começar pela configuração geopolítica mundial, da bipolaridade da Guerra Fria, para a Nova Ordem Mundial, de unimultipolaridade. Agora, a história da luta dos rebeldes da Aliança contra o Império Galáctico, que arrebatou gerações de fãs, começa a ganhar novos contornos políticos, contextualizados na perspectiva da sociedade norte-americana e no resultado das últimas eleições, com a vitória do radicalismo de Donald Trump.
Baseado no universo Star Wars, Rogue One é o primeiro filme fora das trilogias principais. Com história de John Knoll e Gary Whitta, roteiro de Chris Weitz e Tony Gilroy, o longa está situado antes dos eventos do episódio IV - A New Hope, narrando a história do roubo dos planos da Estrela da Morte pela Aliança Rebelde. Rogue One traz novos personagens, ampliando o mundo ficcional de George Lucas, mas sem deixar de fazer referências diretas à primeira trilogia, especialmente os episódios IV e V.
O filme apresenta a história de Jyin Erso (Felicity Jones), filha do cientista Galen Erso (Mads Mikkelsen), que liderou o projeto de engenharia da Estrela da Morte. Usando uma identidade falsa, capturada pelo Império por alguns delitos, Jyn é resgatada pela Aliança e coagida a colaborar com os rebeldes. Sua missão é reencontrar Saw Gerrera (Forest Whitaker), um líder rebelde controverso, que a criou após a prisão de seu pai pelo império, mas que a abandonou na adolescência. A aliança quer que ela consiga informações sobre a construção da Estrela da morte, sendo vigiada de perto pelo oficial de inteligência da Aliança, Cassian Andor (Diego Luna).
Inicialmente, a personagem é cética e age de maneira cínica perante o ideal revolucionário contra o império, sem se importar com a causa que só lhe trouxe dor e sofrimento. Sua postura começa a mudar quando tem acesso a um segredo de seu pai, o que faz com que a jovem se torne a inspiração e a esperança dos rebeldes, responsável pela ofensiva da Aliança em território controlado por Darth Vader (James Earl Jones/Spencer Wilding).
Empoderamento feminino
Jyn é mais uma personagem feminina de destaque dentro da saga. Assim como Rey (Daysi Ridley), de The force awakens(Ep.VII), é ela quem concentra a ação, assumindo o papel de Luke Skywalker dentro do episódio, acompanhada de perto por Cassian Andor (Diego Luna), uma espécie de Han Solo latino. Poderíamos mesmo dizer que ela detém o poder da força. Ainda que a princesa Lea (Carrie Fischer), da trilogia original, e Padmé Abdalla (Natalie Portman), da segunda trilogia, tenham papel essencial dentro da mitologia Star Wars, ambas exercem função coadjuvante, não protagonizando os confrontos centrais contra o império. Tanto Lea quanto Padmé são mulheres fortes, porém possuem uma atuação mais política, geralmente sendo salvas das situações de risco. Já Rey (Daysi Ridley), de The force awakens, e Jyn (Felicity Jones), de Rogue One, atuam como protagonistas na trama, destacando-se como líderes guerreiras, exercendo um maior ou menor domínio sobre a força.
Recuperando a magia Star Wars
Para os fãs que se decepcionaram com a segunda trilogia (episódios I, II e III), que narrava a história do pequeno Anakin Skywalker até se transformar em Darth Vader, os novos filmes da franquia retomam a magia da saga intergaláctica. Com muitas cenas de ação e recursos visuais mais sofisticados, assim como The force awakens (Ep.VII), Rogue One aposta na nostalgia, recuperando a atmosfera da primeira trilogia, com muitas homenagens e a aparição de personagens antológicos.
Peter Cushing e Carrie Fischer em cena de A New Hope (1977) |
Esse tipo de recriação digital já foi utilizado anteriormente para recuperar a imagem de atores falecidos durante as filmagens, como o caso de Oliver Reed, em “O gladiador” (2000) e Paul Walker, em “Velozes e furiosos 7”(2015), mas não tinha sido utilizada para colocar um ator em cena fora destes casos. O trabalho da equipe VFX em Rogue One impressiona pela verossimilhança e naturalidade dos movimentos de Cushing. A ressuscitação digital de um ator falecido ainda é alvo de controvérsias quanto a ética do procedimento, e Rogue One levantou a discussão na imprensa internacional sobre as conseqüências dessa prática em Hollywood. Além de ressuscitar digitalmente o ator britânico, o filme também rejuvenesceu digitalmente outro personagem igualmente importante dentro da saga.
O filme tem várias camadas, apresentando personagens psicologicamente mais complexos e humanos, cheios de contradições e falhas, que vão além do velho maniqueísmo entre o bem e o mal. Há muitos momentos de alívio cômico, principalmente nos diálogos com o droide K-2SO, um guarda da segurança imperial reprogramado pela Aliança, interpretado por Alan Tudyk, que também dá vida ao droide por meio da captura de movimentos.
Outro grande vilão do filme é o diretor Orson Krennic (Ben Mendelsohn), responsável pelo desenvolvimento do projeto da Estrela da Morte. Entretanto, apesar da boa atuação de Mendelsohn, o personagem parece ofuscado pela presença (ainda que digital) do governador Tarkin e do próprio Darth Vader, é claro.
Segundo o diretor Gareth Edwards, fã das trilogias Star Wars, o realismo das batalhas se deve às novas técnicas de efeitos visuais. O produtor executivo John Knoll e sua equipe construíram uma tela wraparound de LED gigantesca, com mais de 15 metros de diâmetro e uma abraçadeira central de 6 metros de altura, que permitia a reprodução das imagens nas telas, possibilitando que Gareth pudesse visualizar os efeitos visuais em tempo real ainda no set de filmagem, e incluir digitalmente outros elementos, como os lasers que voavam nas batalhas espaciais, enquanto dirigia os atores.
As gravações ocorreram nos estúdios Pinewood e em locações reais na Inglaterra, Islândia, Jordânia e Maldivas. Alguns exemplos de sets funcionais incluem a base rebelde Yavin4, com mais de 106 metros de comprimento por 60 metros de largura, além da Estrela da Morte, com quase 18 metros de largura por 6,5 metros de altura, minuciosamente recriada por meio de pesquisas e fotografias.
A força como signo da fé
A mitologia de George Lucas, baseada na jornada do herói, da luta do bem contra o mal, não é apenas recheada de elementos da mitologia grega e da cultura oriental, tão bem explicados por Christopher Vogler (A jornada do herói), e Joseph Campbell (O poder do mito; o herói de mil faces). Segundo o próprio Campbell, o filme encara o Estado como máquina, mostrando que não são as tecnologias que vão nos salvar, e sim a magia da força, ou seja, a confiança nas potencialidades do ser humano, sem negar a razão. Simbolicamente a luta de Luke Skywalker é a recuperação da humanidade em Darth Vader, um homem-máquina transformado pelo controle de um Estado autoritário, o lado negro da força.
A força, símbolo de fé na humanidade, é a alavanca que move os personagens. Enquanto os demais filmes das duas trilogias estão centrados na energia dos Jedis, em Rogue One, esse poder é mais diluído na fé. É a esperança na causa que faz com que a Aliança Rebelde lute contra o poder quase indestrutível do império.
A força também é símbolo de sabedoria. No filme, a representação da magia Jedi é encontrada na fé e na sabedoria de um monge cego, mestre nas artes marciais, e seu melhor amigo, interpretados por dois astros chineses da atualidade. O personagem Chirrut Imwe (Donnie Yen) é um dos guardiões do templo de Jedha, mas não possui poderes especiais. Entretanto, ele se torna forte pela fé no poder da força, repetido como mantra: “Estou unido à força. A força está comigo”. Ele e seu amigo Baze Malbus (Jiang Wen), enfrentam as situações de risco invocando a união com a força, que lhes dá coragem para lutar contra o inimigo. Intuitivo, ágil e com senso de humor, Chirrut vê além dos olhos, revelando as intenções da alma. Os dois personagens são responsáveis por uma das melhores sequências do filme.
Quem é o verdadeiro inimigo?
O mundo ficcional de Star Wars pode ainda ser analisado dentro de uma perspectiva histórica, mostrando a visão de Hollywood e da sociedade norte-americana, contextualizado a partir das relações sócio-políticas contemporâneas.
Quando a New Hope foi lançado, em 1977, o contexto geopolítico mundial era a corrida espacial e armamentista entre EUA e URSS, período conhecido como Guerra Fria (1945-1991). Herdeira da geração pós-Segunda Guerra Mundial, a saga intergaláctica apresentava uma narrativa revolucionária contra o poder de regimes ditatoriais, representada pela configuração nazi-facista do Império Galáctico, e a construção de armas nucleares. Ao aumento da tensão política, no final dos anos 60, e o desgaste dos governos Lyndon Johnson (1963-1969) e Richard Nixon (1969-1974), o primeiro episódio da saga da família Skywalker foi contemporâneo da campanha vitoriosa de Jimmy Carter (1977-1981), que prometia uma política de distenção, lançando uma nova esperança de paz no mundo. Entretanto, a grave crise econômica aliada à atuação de Carter, visto como indeciso pelos eleitores norte-americanos, diante da crise de reféns do Irã e da ocupação militar soviética no Afeganistão anulou suas chances de reeleição diante da posição conservadora do candidato Republicano Ronald Reagan (1981-1989). A maioria dos norte-americanos queria uma reação mais enérgica do governo e Reagan atendia a esses anseios. Os filmes seguintes, da primeira trilogia, The Empire Strikes Back (1980) e Return of the Jedi (1983), também correspondiam a essa demanda. Não por coincidência, o sucesso dos filmes da saga fez com que Reagan, em 1983, criasse o programa de defesa estratégica no espaço (SDI), que chamou de “Guerra nas Estrelas”, acirrando o clima de tensão militar e ideológica com os soviéticos.
Vinte e cinco anos após o fim da guerra fria, com o colapso do bloco soviético e a supremacia militar dos EUA, o inimigo agora é o terrorismo. Após os eventos de 11 de Setembro de 2001, e os diversos ataques terroristas ao redor do mundo, o medo de novos atentados produziram uma onda crescente de intolerância étnica e religiosa, principalmente contra imigrantes e mulçumanos. Após os governos dos republicanos da família Bush, de postura mais conservadora, e dos democratas Bill Clinton e Barack Obama, o radicalismo volta a ganhar mais espaço na política dos EUA, sendo personificado na figura do republicano e presidente eleito Donald Trump.
Em Rogue One, os rebeldes da Aliança são chamados pelo Império de terroristas, compostos por negros, latinos, asiáticos, ou seja, imigrantes que lutam por um ideal revolucionário contra a dominação de Vader, lutando pela volta da República e da democracia. Entretanto, utilizando-se de um discurso pacifista, de restabelecimento de paz na galáxia, são as tropas imperiais que invadem territórios, com tanques de guerra nas ruas, proclamando a defesa da “verdade e justiça” como justificativa para a ocupação militar. Por outro lado, a Aliança não está em consenso. Saw Gerrera (Forest Whitaker) é apenas um dos líderes rebeldes que decide agir por contra própria, com ataques pontuais de guerrilha junto às tropas imperiais, sendo considerado igualmente perigoso pelo Senado.
Neste mundo ficcional, os líderes políticos não chegam a um acordo e a diplomacia está fragilizada pelo terror, materializado na Estrela da Morte. A esperança surge com a resistência e coragem de Jyn Erso (Felicity Jones), que passa a liderar um pequeno grupo de insurgentes.
Politicamente correto
Os extremismos, sejam eles de qualquer natureza, que preconizam medidas radicais como solução para os problemas são questionados em Rogue One, principalmente a partir dos personagens Cassian Andor (Diego Luna), Bodhi Rook (Riz Ahmed), Jyn Erso (Felicity Jones) e Galen Erso (Mads Mikkelsen).
Cassian Andor (Diego Luna), um respeitado oficial da inteligência rebelde, é um homem que perdeu tudo e entregou sua vida à causa da Aliança, traindo e matando em prol da luta Rebelde, obedecendo sem restrições ordens e hierarquias; Bodhi Rook (Riz Ahmed), piloto de carga do Império é um homem comum, que não deveria estar no meio desta guerra, e se torna um desertor; Galen Erso (Mads Mikkelsen) é um cientista que se vê obrigado pelo Império a construir a Estrela da Morte, arma nuclear que pode destruir um planeta; Já sua filha, Jyn Erso (Felicity Jones), acreditando ser abandonada pelo pai por causa da guerra do Império contra a Aliança Rebelde, tem desprezo por ambos os lados, não se importando com a desgraça alheia. Todos esses personagens vivem um dilema pessoal e crenças que os conduzem a situações limite. Entretanto, uma mudança em suas vidas mostra que contra a fé cega na causa, seja ela qual for, o bom senso sempre deve prevalecer na tomada de uma atitude.
O filme mostra o poder da ideologia para justificar ações armadas, por ambos os lados do conflito, mas se posiciona contra os extremismos. Talvez o longa seja a resposta de uma vertente de Hollywood que se posiciona contra o radicalismo de Trump. De temperamento explosivo e discurso xenofóbico, o presidente eleito promete adotar medidas políticas contra imigrantes e refugiados, além de modernizar o arsenal nuclear, aumentando a tensão bélica no mundo. Como reação ao discurso de Trump, o presidente Vladimir Putin também anunciou o aumento da capacidade nuclear da Rússia e a vigilância de suas fronteiras. Isso significa, infelizmente, que talvez estejamos mais próximos de uma segunda Guerra Fria. Dentro deste cenário, Rogue One mostra que a mitologia de George Lucas está cada vez mais contextualizada com a política atual, apostando no politicamente correto.
Elisabete Estumano Freire
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